*Por Paulo Roberto Coimbra Silva
Em meio às recentes controvérsias acerca dos efeitos jurídicos da pandemia de Covid-19, especialmente diante da necessidade de preservação dos empregos, as exigências impostas aos empregadores devem ser objeto de redobrado escrúpulo e revisitadas.
Certamente, a grave crise sanitária vivida, que demanda o engajamento de toda a sociedade civil, bem como a danosa crise financeira que se avizinha, exigem especial cuidado no sacrifício impingido ao caixa das empresas. Este deve ser mobilizado, ultima ratio, à manutenção dos postos de trabalho, evitando-se o agravamento exponencial dos indesejáveis efeitos vislumbrados e, em certa parte, já sentidos.
Nesse cenário, a recente MP 927/2020 esclareceu, em seu artigo 29, que as contaminações pelo novo vírus somente podem ser caracterizadas como ocupacionais se comprovado o nexo causal com o trabalho.
Em análise deste dispositivo, o STF suspendeu os seus efeitos, no dia 29/04. O ministro Alexandre de Moraes, em seu voto divergente, acompanhado pela maioria dos seus pares, considerou o afastamento da caracterização da contaminação por Covid-19 como doença ocupacional ofensivo aos trabalhadores que continuam a exercer as suas funções regularmente, impondo-lhes o ônus de produzir prova do nexo causal demasiadamente difícil. Se sob o ponto de vista do segurado, a decisão é digna de louvor, em relação aos empregadores, requer ponderação.
Apesar da aludida suspensão, continua vigente a sistemática da Lei nº 8.213/91, que estabelece a caracterização como acidente do trabalho nos casos de doença endêmica (quanto mais na atual situação de pandemia) quando houver comprovação de que a contaminação é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. As únicas hipóteses em que se pode presumir a relação entre o exercício de determinadas atividades e certas doenças são aquelas previstas na relação de Nexos Técnicos Epidemiológicos Previdenciários (NTEP), o que não é (e nem poderia ser) o caso da Covid-19.
Tratando-se de evento de força maior, a pandemia por Covid-19, malgrado da natureza, revela-se contrário ao desejo das pessoas de bem e aos interesses dos empregadores, sendo absolutamente teratológico impor às empresas mais esse pesado ônus. Eventual responsabilização das empresas por contaminação de Covid-19, como doença ocupacional, nos casos em que não houver efetiva exposição ao vírus em razão do trabalho somente agravaria a crise de liquidez já enfrentada, precipitando a bancarrota de empregadores e a inexorável extinção dos correlatos postos de trabalho.
Não se trata de um risco inerente à maioria dos negócios, mas sim um risco da humanidade, o qual o Estado não pode e nem poderia pretender despejar irresponsavelmente sobre a iniciativa privada, protegida constitucionalmente, enquanto um dos pilares necessários à geração de riquezas em nosso sistema produtivo.
A nova MP também prevê atuação orientadora dos Auditores Fiscais do Trabalho, no período de 180 dias, exceto quanto às irregularidades mais críticas, como aquelas que envolvem grave e iminente risco e trabalho em condições análogas às de escravo.
Não obstante, o art. 31 da MP 927, que determina a atuação fiscal orientativa, também foi suspenso pelo STF, sob o fundamento de que a fiscalização menos intensa atentaria contra a saúde dos empregados e não auxiliaria em nada o combate à pandemia. A posição minoritária adotada pelo ministro Luís Barroso, todavia, nos parece mais acertada, ao propor a manutenção do dispositivo acompanhada de interpretação conforme a Constituição. A proposta era de que a atuação inicial da fiscalização fosse mantida como orientativa durante este período, e, apenas em caso de recalcitrância, o auditor do trabalho ficaria investido de seus poderes para multar e autuar.
Nesse particular, lamenta-se que a decisão prevalente tenha se olvidado dos ônus excessivos criados para os empregadores pelas atuais circunstâncias. Em prestígio ao primado da boa-fé e à adoção do diálogo, diante da complexidade, densidade e instabilidade de nossas regulações, bem como da gravidade das sanções cominadas, a atuação diretiva e colaborativa da fiscalização (trabalhista e fiscal) deveria ser regra, mesmo em condições normais, imputando-se penalidades apenas em caso de reincidência.
Debalde as controvérsias, as providências pretendidas pela MP remetem à necessidade de conformação da ordem jurídica, de forma proporcional, à conjuntura sobre a qual recairão os seus efeitos.
Nesse sentido, o tema evoca a questão da cumulação (i) da ação regressiva do INSS em face da empresa em caso de negligência quanto às normas de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva, e (ii) do recolhimento da Contribuição por Riscos Ambientais do Trabalho (CRAT) ajustada por Fator Acidentário de Prevenção (FAP) agravado nos casos de ocorrência de acidente do trabalho.
A nosso sentir, o duplo ônus imposto aos empregadores nesses casos também desperta a necessidade de reavaliação do aparato normativo e da jurisprudência em torno do tema, na busca de soluções que, a um só tempo, atendam à necessidade de custeio da previdência social e à justa medida de responsabilidade da empresa pelos acidentes do trabalho.
A CRAT tem por finalidade dar concretude ao direito dos trabalhadores ao seguro contra acidentes de trabalho, nos termos do art. 7º, XXVIII, da CR/88. A razão de ser da CRAT é servir de fonte de financiamento para a concessão de benefícios decorrentes de acidentes ou doenças laborais que resultem na incapacidade, temporária ou permanente, ao trabalho, assim como de condições especiais de trabalho (aposentadoria especial). Eis o seu propósito, que, enquanto tributo finalístico, condiciona sua legitimidade e constitucionalidade.
O tributo instituído pela União[1] tem alíquota variável, conforme o risco da atividade que absorve a maioria dos segurados num determinado estabelecimento, e incide sobre o total das remunerações pagas ou creditadas pelo empregador, no decurso do mês.
Em consonância ao risco in abstracto, objetiva e genericamente imposto e acobertado pela cobrança da CRAT, o FAP[2] possibilita a redução de sua alíquota em até 50%, ou aumento, em até 100%, em conformidade com os índices de frequência, gravidade e custo de ocorrências previdenciárias. Pretendeu-se, dessa forma, adequar o cálculo do tributo à realidade de cada estabelecimento, considerando os dados concretos do desempenho na prevenção de acidentes do trabalho.
Dentre os benefícios financiados pela CRAT, destacam-se[3] o auxílio-doença, o auxílio-acidente, a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte, cuja concessão pode advir de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho (cujos custos, frise-se, são custeados pela CRAT).
Quando o acidente ocorrer por negligência quanto às normas de segurança e higiene do trabalho e for concedido benefício previdenciário correlato, a lei[4] prevê a possibilidade do ajuizamento de ação de regresso, pelo INSS, em face do responsável para ressarcimento dos valores despendidos.
Contudo, demonstra-se desarrazoada a exigência de ressarcimento dos custos previdenciários ao INSS sem a demonstração de haver, de fato, dano a ser indenizado, hipótese que somente se materializa quando o valor dos benefícios concedidos superar os montantes devidos a título de CRAT.
A controvérsia foi levada à apreciação do STJ, que, sem qualquer análise quantitativa e aprioristicamente, consolidou jurisprudência no sentido de que o recolhimento da contribuição por RAT, per si, “não impede a cobrança pelo INSS, por intermédio de ação regressiva, dos benefícios pagos ao segurado nos casos de acidente do trabalho decorrentes de culpa da empresa”[5].
Trata-se de matéria que, venia rogata, tem sido decidida de forma reiteradamente superficial pelo i. Tribunal, com simples menção à jurisprudência pacificada em torno do tema e transcrição das ementas de julgados no mesmo sentido, com absoluto desprezo a análise de cada caso. A escassez de fundamentos nestes acórdãos revela que o tema não foi e nem tem sido alvo da reflexão que lhe é devida.
Um dos primeiros julgados proferidos acerca do tema, em 2003, replicado em diversos acórdãos como indicativo da jurisprudência consolidada, padece de superficialidade candente. Em seu singelo voto, o relator adotou como razões de decidir o parecer do Ministério Público Federal, estribado no argumento de que os custos de ato ilícito praticado por empregadores (se referindo a negligência na observância de normas de saúde e segurança do trabalho) não poderia ser repartido entre toda a sociedade[6].
Entretanto, é necessário notar que os custos dos benefícios previdenciários concedidos em razão da ocorrência de acidente do trabalho já são arcados pelos próprios empregadores, mesmo os faltosos, por meio do recolhimento de CRAT com alíquota, não raro, mais elevada em razão do FAP agravado.
O argumento esgrimido no acatado parecer do MPF padece de grave erro de premissa. Ora, se o pagamento dos benefícios previdenciários fosse custeado por impostos (afinalísticos), seria coerente argumentar-se a impossibilidade de compartilhamento dos danos com toda a coletividade. Não obstante, os benefícios previdenciários-acidentários pagos pelo INSS são financiados por contribuição social específica e finalística, suportada pelos próprios empregadores, cuja arrecadação tem destino certo e determinado.
Além disso, é bastante razoável se estimar que, na maioria dos casos, o valor da CRAT, recolhido a mais em razão do FAP agravado, é substancialmente superior ao valor efetivamente despendido pelo INSS com a concessão de benefício previdenciário a segurado acidentado, porquanto (i) a referida contribuição incide sobre a totalidade das remunerações pagas pela empresa (e não apenas sobre a remuneração do segurado afastado), (ii) agravada durante dois exercícios completos (26 competências, ao se computar o 13º) após a data do afastamento (independentemente deste poder ter um prazo muito inferior), e (iii) ao menos em relação à cota patronal, sem aplicação do teto para a concessão de benefícios.
Não é razoável o argumento de ser a ação de regresso por parte do INSS, necessária para que se garanta o cumprimento das normas trabalhistas que asseguram a saúde e segurança do trabalhador. Os mecanismos adequados para se exigir a observância da legislação do trabalho já existem, a saber, primus, a fiscalização pelas autoridades trabalhistas competentes e a imposição das penalidades cabíveis e, secundus, a majoração do FAP, que provoca um aumento exponencial e, não raro, desproporcional no valor da CRAT a ser recolhida em anos subsequentes.
Nessa ordem de ideias, podem ser assim sistematizados os requisitos para a procedência da ação de regresso movida pelo INSS:
*A comprovação da negligência (entenda-se culpa stricto sensu) do empregador, que não prescinde uma análise acurada das circunstâncias fáticas pertinentes;
*A prova da existência de genuíno prejuízo a ser indenizado, somente verificado quando se comprovar que o valor total dos benefícios decorrentes de acidentes e doenças do trabalho pagos pela autarquia, num determinado exercício, superem o valor total arrecado a título de CRAT no mesmo ano;
*Transparência das contas públicas porquanto, sem transparência, não há como o INSS se desincumbir da prova de fato constitutivo de seu direito (in casu, efetivo prejuízo);
*A demonstração de que o valor dos benefícios concedidos aos empregados afastados da empresa ré tenha excedido o montante de CRAT por ela recolhido no mesmo período; e, também
*A comprovação de que a soma dos benefícios concedidos aos empregados afastados da empresa ré supere o aumento promovido no valor da CRAT recolhida nos segundo e terceiro exercícios subsequentes ao(s) afastamento(s), em função da elevação do FAP aplicável à empresa.
Nesse sentido, a menos que se façam presentes, cumulativamente, os 5 requisitos acima descritos, e que o pedido do INSS restrinja-se (limite) aos valores dos benefícios pagos que porventura excedam às contribuições pagas (no mesmo período de concessão) ou majoradas (no segundo e terceiro anos posteriores ao afastamento), a exigência dos custos previdenciários por meio de ação de regresso representa imposição de onerosidade excessiva à empresa e inadequado bis in idem.
Frise-se, mais uma vez, com a merecida ênfase, que direito de regresso somente assistirá ao autor se, além de inequívoca negligência (culpa) do empregador, comprovadamente houver efetivo prejuízo a ser indenizado (pressuposto indesviável à responsabilidade) que, nesse caso, deverá limitar-se à exata extensão do dano (insista-se, comprovado). Do contrário, a pretensão do INSS não consistirá em genuíno pedido de indenização, mas sim verdadeiro enriquecimento sem causa travestido de reembolso (já coberto pela CRAT e, em especial, por sua majoração pelo FAP agravado).
As medidas implementadas pela MP 927 decorrem da verificação de haver onerosidade excessiva sobre as empresas em meio à pandemia. Nesse contexto, oportuno, se não, imperativo, se faz revisitar o entendimento em torno do cabimento da ação regressiva do INSS em face do empregador, forjando os requisitos e limites de sua responsabilidade.
Sem a pretensão de esgotar o tema, provocamos e confiamos numa revisão desse e de outros fardos excessivos frequentemente impostos aos empregadores sob a chancela, nesse caso, de jurisprudência frágil e dissonante de seus impactos na sociedade atual.
[1] Lei 8.212/91, art. 22, II.
[2] Lei 10.666/03, art. 10.
[3] Lei 8.213/91, art. 18.
[4] Idem, art. 120.
[5] Trecho da ementa do EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 973.379/RS, Rel. ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (Des. convocada do TJ/PE), 6ª T., j. em 06/06/2013, DJe 14/06/2013.
No mesmo sentido: AgInt no AREsp 763.937/PR, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ª T., j. em 27/05/2019, DJe 30/05/2019; REsp 1745544/RS, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, 2ª T., j. em 13/12/2018, DJe 18/12/2018; AgInt no REsp n. 1.677.388/RS, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, 1ª T., j. em 7/6/2018, DJe 20/6/2018; AgRg no REsp. 1.543.883/SC, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 13.11.2015; AgRg no REsp. 1.458.315/SC, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 1o.9.2014; AgRg no AREsp. 294.560/PR, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 22.4.2014.
[6] REsp 506.881/SC, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, 5ª T., j. em 14/10/2003, DJ 17/11/2003, p. 364
*Paulo Roberto Coimbra Silva é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.
**Artigo originalmente publicado no Portal ConJur em 29 de maio de 2020.