*Por Thelma M. Teixeira
Na peça teatral “Huis Clos” de Jean Paul Sartre, três personagens, após sua morte, estão no inferno, num quarto fechado, condenados a conviver confinados.Em acirrada discussão e conflito, obrigados a se verem através dos olhos dos outros e expostos às suas falhas, concluem que “o inferno são os outros.”
Dentre as várias competências dos seres humanos, uma das mais difíceis de adquirir, manter e desenvolver é a competência relacional, ou seja, a capacidade de relacionar-se de maneira adequada com seus semelhantes. O que acontece é que os ditos semelhantes, não o são tanto assim. Somos seres únicos e neste mundo de 7 bilhões de pessoas, não há duas pessoas iguais.
Apesar de saber disto, queremos que os outros sejam iguais a nós, pensem como nós, ajam e reajam como nós. Somos intolerantes ao diferente, àquele que diverge da nossa opinião, que tem crenças que não são as mesmas nossas ou que, como num espelho, nos mostra alguns aspectos/características que não vemos ou não queremos ver.
Cientes de que os estilos comportamentais são únicos, nada mais natural que o processo de interação, que ocorre constantemente entre as pessoas, seja tão complexo e que a convivência ou relacionamento humano não seja nada fácil. Estamos destinados, por isso, a um mau relacionamento? Ou podemos reverter esta situação?
Tudo inicia no autoconhecimento. E o autoconhecimento supõe que cada pessoa reconheça suas características, forças e fraquezas; sua personalidade e estilo comportamental, utilizando-os de forma adequada e oportuna. Quando a pessoa tem consciência de suas emoções e sentimentos e de como lidar com eles, isso a faz analisar (sem ficar se culpando) porque reage de determinada maneira e, se necessário, a rever seu comportamento.
Um sentimento, por exemplo, que é muito negado pelas pessoas, especialmente em ambientes organizacionais, é a inveja. Ela existe e está presente em várias situações. Se a pessoa tem consciência de que está com inveja, ela pode ter um comportamento positivo de fazer algo para ser como o outro é, sem querer destruí-lo, mas ao contrário, admirá-lo. Autoconhecer-se é compreender não somente forças e fraquezas, mas também possibilidades e especialmente limites. É saber e aceitar que não somos perfeitos.
O físico e escritor brasileiro Marcelo Gleiser, em um dos seus livros, Criação Imperfeita, diz que foram assimetrias na natureza que acabaram resultando na vida. Em uma entrevista, quando perguntado sobre a transposição dessa teoria para a vida cotidiana, deu a seguinte resposta:
“Acho que, no mínimo, as pessoas irão se olhar com um jeito mais permissivo, com menos cobrança de perfeição. Não é um elogio à feiura, mas a noção de que a perfeição não é o ideal que devemos perseguir. Tanta gente perde tempo tentando ser o mais perfeita possível e se deprime quando não consegue. O que digo é que, na natureza, e, espero, nas nossas relações, temos de ter maior tolerância com o imperfeito. Maior tolerância e maior apreciação.”
Ser tolerante com os outros supõe conhecer este outro, condição ao desenvolvimento da competência relacional, e ocorre de maneira eficaz quando há interesse e respeito. Mas seres humanos necessitam ter sua privacidade, têm limites em seus relacionamentos. São como os porcos espinhos da fábula de Schopenhauer:
“Num dia frio de inverno, alguns porcos-espinhos se juntaram para se aquecerem com o calor de seus corpos. Mas logo viram que estavam se espetando e se afastaram. Ficaram com frio de novo e se juntaram, ficando entre dois males até descobrirem a distância adequada. (…)
Querer saber as forças e fraquezas do outro e revelar as suas, respeitando os limites de abertura (até onde queremos aproximar e nos revelar) é o que faz acontecer um verdadeiro encontro entre pessoas. A empatia, capacidade de compreender que “o outro não é igual a mim” e ver a desigualdade como oportunidade e não como ameaça, é condição imprescindível ao bom relacionamento.
A capacidade de comunicar no sentido de “tornar comum”, ou seja, “estamos realmente nos entendendo apesar das nossas diferenças”, é a habilidade que vai permitir que as pessoas compartilhem conhecimentos, experiências e aprendizados. A comunicação verdadeira é a base da competência relacional.
O filme argentino Relatos Selvagens (foto) causa-nos impacto sobre a condição humana e sobre a (in)competência relacional. Através de seis histórias de suspense e humor negro, onde o tema é a vingança, nos é apresentado o lado instintivo e irracional que todos temos, mas que invariavelmente negamos.
A arrogância que muitas vezes se revela no ser humano e o achar que são os outros que se comportam irracionalmente e não nós, mostrados no filme através do comportamento de fúria de personagens em situações de estresse, é uma reflexão importante a ser feita.
Ele também nos leva à reflexão sobre nossa fragilidade, nosso individualismo e da possibilidade de decisões totalmente inadequadas quando agimos impulsivamente em situações comuns (do nosso dia a dia) tomando decisões extremas.
O filme possibilita-nos ainda momentos de catarse (em seu sentido original do grego, purificação, purgação) trazendo à consciência aquilo que recalcamos. Em termos menos psicanalíticos, aquilo que colocamos como limites e que temos de assim fazer, para vivermos em sociedade.
O depoimento abaixo, de uma criança, nos ensina sobre relacionamento e resume o que é competência relacional:
“Um jeito melhor para conviver com as pessoas é respeitando a sociedade e você mesmo, porque ninguém gosta de ser desrespeitado. Outra coisa é cada um cuidar da sua vida, porque se não for assim, começam muitas brigas. Merecemos ser respeitados do jeito que nós somos. Não é só porque uma pessoa é diferente ou de outro jeito que precisamos desrespeitá-la ou excluí-la de alguma coisa.” – Carolina Nunes de Oliveira da Silva, 11 anos
A competência relacional é um processo e não um fim a ser alcançado. As pessoas são seres complexos que atuam guiados não somente pelo consciente, mas muito mais pelo inconsciente e estão sempre mudando, o que a torna um grande desafio.
Entretanto por mais desafiante que seja, a competência relacional precisa ser desenvolvida e tratada com otimismo. Não podemos aceitar que as pessoas sejam o inferno dos outros.
*Thelma M. Teixeira é consultora, especialista em psicodrama e conselheira da ABRH-MG.
**Artigo originalmente publicado na revista digital DNews em setembro de 2015.