Imprensa

Divergir é legítimo. Desumanizar, não

A semana terminou com uma cena que jamais deveria ser motivo de festa: a morte de Charles Kirk transformada em entretenimento. Em vez de consternação, houve quem celebrasse. O fato em si já é grave; o aplauso, pior ainda. Ele expõe uma ferida aberta, ou seja, a nossa crescente indiferença diante da dor do outro. A espetacularização da violência tem audiência. Nas redes e em parte da mídia, o sofrimento vira conteúdo, clique, meme. Quando a tragédia ocupa o palco, a empatia sai de cena. Comentários como “foi pouco” e “pediu por isso” circulam com a naturalidade de quem já se habituou à brutalidade e normalizar a brutalidade é o primeiro passo para repeti-la.

Tratar a morte como show é sintoma de uma sociedade exausta, polarizada e com filtros emocionais avariados. A desumanização facilita julgamentos sumários: não há história, contexto nem família. Há apenas “o lado certo” e “o inimigo”. É mais fácil torcer do que entender. E o entendimento dá trabalho, pois requer escuta, nuance e responsabilidade. Aplaudir a violência dessensibiliza, amplia o “nós x eles” e empobrece o debate público. O sofrimento vira conteúdo e a empatia sai de cena, efeito que destrói valores cívicos e fragiliza a democracia. Nesse ambiente, a desumanização vira método: normalizam-se julgamentos sumários, cresce a intolerância e se perde a capacidade de construir mínimos consensos.

Vale destacar que a comunicação revela caráter. Quando a fala vibra no ódio, o primeiro atingido é quem o emite. Não existe poder numa voz que celebra a dor; há apenas corrosão. O discurso que desfigura o outro, cedo ou tarde, desfigura também quem o profere. Porque quem se acostuma a ferir pela palavra perde a medida do humano. A linguagem é um espelho, pois revela de onde falamos, o que valorizamos e até o que tememos. Quando escolhemos o ataque como forma de expressão, denunciamos mais sobre nossas fragilidades do que sobre o alvo. A retórica do ódio pode parecer força no curto prazo, mas funciona como ácido ao desgastar vínculos, credibilidade e, por fim, a própria identidade de quem a profere.

As plataformas digitais amplificam todo este contexto. Algoritmos premiam reações extremas, afinal o ódio rende engajamento. Isso não nos isenta: ao compartilhar, comentar ou “curtir” a barbárie, ajudamos a empurrar o ponteiro para o lado errado. Responsabilidade é de todos: empresas, Estado, imprensa e usuários.

Na política, o atalho do ressentimento rende likes, mas cobra caro da democracia. Não importa o partido: sociedades que não toleram o diferente e não sabem dialogar no contraditório não avançam. Divergir é legítimo; desumanizar, não. A democracia pede freios civilizatórios e o principal deles é o respeito. Quando o opositor vira “ameaça” e não interlocutor, desaparecem os incentivos para negociar, ceder e construir soluções comuns. Nesse terreno, prosperam boatos, simplificações e morre a política como arte de compor interesses legítimos.

Como sair daqui? Educação midiática, letramento emocional e compromisso editorial com o contexto. Pausar antes de publicar, checar antes de opinar, recordar que há pessoas por trás de cada vídeo. Em casa, na escola, no trabalho: cultivar a empatia como prática diária, não como slogan.

Por isso sempre digo que autoconhecimento é vida. O autoconhecimento é um freio civilizatório na prática: ajuda a identificar gatilhos, nomear emoções como raiva, medo e tristeza e escolher respostas que não alimentem a desumanização. Quem conhece seus valores e limites consegue pausar antes de postar, aplicar a regra do “é verdadeiro, necessário e respeitoso?”, distinguir indignação justa de linchamento digital e recusar o “nós x eles” como atalho emocional. Também permite reconhecer vieses, buscar fontes confiáveis, reduzir a exposição a conteúdos violentos e optar por conversas presenciais quando o debate degrada. No cotidiano, isso se traduz em pequenas decisões, como respirar 10 segundos, reformular ataques em críticas a ideias, praticar escuta ativa, pedir desculpas quando necessário e, se preciso, buscar apoio psicológico. Autoconhecer-se é escolher coerência: preservar a própria humanidade para, então, sustentar espaços de diálogo e respeito, seja on-line ou fora das telas.

Se a morte vira espetáculo, perdemos todos. Que a indignação não se converta em aplauso, mas em ação: políticas que previnam a violência, jornalismo que esclareça, redes que protejam, cidadãos que escolham a humanidade. Recuperar a sensibilidade é urgente e começa na próxima coisa que decidirmos dizer.

David Braga 1 1

David Braga

CEO, board advisor e headhunter da Prime Talent, empresa de busca e seleção de executivos, presente em 30 países e 50 escritórios pela Agilium Group. É conselheiro de Administração e professor pela Fundação Dom Cabral, Presidente da ABRH-MG, VP do Conselho de RH da ACMinas e Presidente do Conselho de Administração da ONG ChildFund Brasil. Instagrams: @davidbraga | @prime.talent

Últimas Publicações